Conto de Natal - Livro Digital

Quando o sonho se concretiza...

Relato de um dia diferente ( e cheio de emoções ) para a nossa aluna Catarina Almeida do 11º A


15 de Setembro, 2011


Esse não foi um dia igual aos outros.
Nesse dia não houve café. Não houve Nirvana, Oasis ou Red Hot. Não houve Gallagher ou Cobain a cantar-me ao ouvido. Não houve sequer chocolate.
O carro devorava o alcatrão negro em garfadas silenciosas. Atrás, nos bancos pretos de couro, a minha mãe tagarelava com uma amiga que decidira acompanhar-nos. De olhos cravados na estrada, de bigode farfalhudo e já grisalho, o motorista repetia vezes sem conta o mesmo tique: o polegar da mão direita erguia-se repentinamente, em intervalos regulares. O meu dedo mindinho clamava por liberdade; ele, que sempre se acostumara a um qualquer par de Converse, via-se no momento entalado num sapato brilhante e imaculadamente branco.
A minha mãe falava.
E a amiga falava.
E o polegar do motorista continuava a erguer-se.
E eu, queda e muda, mantinha-me direita porque a minha mãe havia-me dito para manter as calças minimamente apresentáveis. Sinónimo de: não mexe, não respira.
A minha mente vagueava perdida, pousando ora num trecho de Under the bridge, ora numa qualquer folha de “ A filha de Rasputine”. Os Pixies tocaram Where is my mind umas três vezes na minha cabeça; Bono chegou depois, mas só cantou o refrão de Sunday Bloody Sunday. Recordei rostos e vozes, cheiros e lugares. Anotei mentalmente umas quantas frases que me haviam surgido; revi o 4º acto do Hamlet de Shakespeare.
Setúbal ia parecendo mais perto.
E finalmente chegou. Logo na entrada da cidade, um grande placard anunciava «Bocage, rei por um dia » Cheirava já a mar e a sossego naquele final de tarde preguiçoso.
Não sei o que me passou pela cabeça para participar num concurso daqueles. Desvario? Loucura?
Encontrei escadas de mármore suavizadas por carpetes encarnadas, escrupulosamente esticadas sob os varões de metal. A ladeá-las, dois enormes castiçais de ferro sustentavam lâmpadas que imitavam as antigas velas. E ao cimo, uma porta monstruosa de madeira trabalhada abria-se de par em par, revelando o salão nobre.
De repente, senti-me pequenina. Queria ir-me embora, queria que fosse engano. Não sabia o que fazer ou dizer. Mas alguém me impeliu a entrar.
Os tectos altos brilhavam e Bocage fitava-me, com o seu olhar azul, do mural que se encontrava numa parede. Havia seguramente uma centena de cadeiras, forradas de tecido vermelho, algumas encontrando-se já ocupadas. Senti-me perdida, desnorteada. Dirigi-me a um senhor que parecia encaminhar os presentes para os seus devidos lugares e comuniquei-lhe que vinha para a entrega dos prémios. Sorriu-me e perguntou-me se era a “famosa” vencedora em revelação. Acenei-lhe afirmativamente e indicou-me a última cadeira da segunda fila. Entretive-me a ler os panfletos pousados e esqueci-me onde estava. Só depois acordei, com a voz de um senhor idoso sentado ao meu lado.
“Parabéns”.
Esbocei um sorriso e agradeci, e então percebi que estava lado a lado com os restantes vencedores. O senhor que me felicitara era nada mais do que o vencedor na modalidade poesia. Ao lado, um outro, de óculos e detentor de uma calvície bastante pronunciada perdia-se também na leitura dos folhetos.
Pousei as folhas sobre o colo, mas as minhas pernas tremiam tanto que era impossível mantê-las imóveis. O poeta sentado ao meu lado iniciou uma pequena conversa, comunicando-me que o prémio que iria receber seria o seu 1300º, mais coisa, menos coisa. Fiquei incrédula; o coração martelava-me no peito, tão forte que me chegavam a doer as costelas.
Um senhor aproximou-se, trazendo estampado no rosto um sorriso rasgado. Apresentou-se como Rui Farinho, e rapidamente o reconheci como o membro da LASA que me havia contactado. Depois, foi um frenesim de apertos de mão, “obrigados”, beijinhos e “muito gosto”. Eu esboçava um sorriso e acenava enquanto uma panóplia de faces e nomes desfilavam à minha frente. Entregaram-me um ramo que continha um girassol pequenino; contei todas as pétalas para me abstrair dos olhares que se cravavam nas minhas costas.
A cerimónia começou, finalmente. Houve discursos, música, apresentação dos convidados e demais. Sentia o coração querer saltar para fora. Respirava profundamente, para mantê-lo lá dentro. O porquê da escolha dos textos vencedores foi, sem dúvida, um momento que jamais esquecerei. Só ali percebi que se tratava de um importante concurso literário a nível nacional e que possuía já reconhecimento além fronteiras. O prémio Bocage era cobiçado por muitos e ali estava eu, sem saber o que tinha recebido. Foi ter o meu suor e lágrimas valorizados a um nível a que nunca pensei chegar. Ter o meu trabalho reconhecido e distinguido entre mais de 200 trabalhos.
Despedi-me rapidamente, pois tinha ainda várias horas de viagem. Ficaram-me gravados na memória os olhos sábios do júri, os acordes das guitarras que animaram o espaço, o carinho de Setúbal.
Na viagem para casa, ainda lá atrás se tagarelava, duas lágrimas pequeninas rolaram pela minha face. Não sei de que eram feitas. Talvez do medo que deixei para trás, da alegria, do alívio, da honra que havia merecido. Não sei.
Mas definitivamente, esse não foi um dia igual aos outros.

http://issuu.com/lopescarla/docs/catarina_almeida_-_entrevista/1

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